Num
sobressalto, Beatriz entrou no prédio da médica. Havia planejado mentalmente
tudo que iria perguntar à doutora, uma mulher de meia idade, elegante, que
sempre inspirou sua confiança e admiração, embora envolta em uma aura séria,
quase sisuda, diria. Precisava criar coragem para fazer as perguntas. Coisas do
seu mundo particular, que não dizia nem para o espelho. Espelho?
Entrou no elevador. Olhou para o espelho, para a câmera acima da porta, e para o espelho novamente. Adorava os espelhos grandes e claros dos elevadores: podia ajeitar os cabelos, reparar cada manchinha do rosto, ver se o batom estava precisando de retoque. O elevador estava vazio, então, seria uma excelente oportunidade para aproveitar o espelho sozinha, sem ninguém pra julgar seu impulso feminino vaidoso. Mas havia a câmera, pensou, sempre há câmeras ultimamente. Onde quer que se vá. Deu as costas para a câmera e ficou ser olhando, ajeitando os cabelos à maneira que gostava. E enquanto subia, ficou imaginado se poderiam lhe ver através do espelho, por uma câmera secreta que instalaram para observar garotas desavisadas que gostam de se olhar nos grandes e claros espelhos de elevador. Hoje tem câmera em todos os lugares. Beatriz ficava assustada com aquilo. Sentia-se vigiada. E não eram só as câmeras : a pouco tempo, descobrira na escola que os carrinhos de supermercado possuem sensores que monitoram os trajetos dos clientes nas lojas. Logo ela, que dava mil voltas até achar a uva passa, e depois o pão , e a pasta de dentes. Na Internet, anúncios de coisas que ela queria comprar a perseguiam em todos os sites: como eles podiam saber? Até no e-mail, se recebia uma mensagem sobre academia, logo anúncios sobre vida saudável começavam a brotar na tela. No rádio do celular, surgiam anúncios de estabelecimentos dos quais ela estava próxima. Será que não consigo ficar sozinha? Pensava.
Isso para não falar das redes sociais modernas. Já havia feito greve, prometera ficar uma semana sem acessar, mas não conseguiu. Depois, mais razoável, prometeu acessar, mas sem interagir: nada. Jurou não falar de sua vida, não postar fotos, mas não resistia. Queria mostrar para todos como sua vida era legal, como era feliz e bem resolvida. Não era? Todos ali eram assim. Sabiam tudo de sua vida pelo Facebook. Ela, por sua vez, descobria o que quisesse sobre quem quisesse.
Pensou em 1984, um de seus livros favoritos, onde os cidadãos de uma Londres fictícia eram vigiados até quando dormiam, controlados sobre o que comiam, que exercícios praticavam, o que liam e até as pessoas que amavam. O mundo não estava assim atualmente? O que era segredo? Há quanto tempo não recebia uma ligação de um amigo ansioso por notícias dela? Há quanto tempo não fazia uma ligação desse tipo? Tinha saudade do mistério, tinha saudade de sentir saudades, de ter segredos...
Entrou no elevador. Olhou para o espelho, para a câmera acima da porta, e para o espelho novamente. Adorava os espelhos grandes e claros dos elevadores: podia ajeitar os cabelos, reparar cada manchinha do rosto, ver se o batom estava precisando de retoque. O elevador estava vazio, então, seria uma excelente oportunidade para aproveitar o espelho sozinha, sem ninguém pra julgar seu impulso feminino vaidoso. Mas havia a câmera, pensou, sempre há câmeras ultimamente. Onde quer que se vá. Deu as costas para a câmera e ficou ser olhando, ajeitando os cabelos à maneira que gostava. E enquanto subia, ficou imaginado se poderiam lhe ver através do espelho, por uma câmera secreta que instalaram para observar garotas desavisadas que gostam de se olhar nos grandes e claros espelhos de elevador. Hoje tem câmera em todos os lugares. Beatriz ficava assustada com aquilo. Sentia-se vigiada. E não eram só as câmeras : a pouco tempo, descobrira na escola que os carrinhos de supermercado possuem sensores que monitoram os trajetos dos clientes nas lojas. Logo ela, que dava mil voltas até achar a uva passa, e depois o pão , e a pasta de dentes. Na Internet, anúncios de coisas que ela queria comprar a perseguiam em todos os sites: como eles podiam saber? Até no e-mail, se recebia uma mensagem sobre academia, logo anúncios sobre vida saudável começavam a brotar na tela. No rádio do celular, surgiam anúncios de estabelecimentos dos quais ela estava próxima. Será que não consigo ficar sozinha? Pensava.
Isso para não falar das redes sociais modernas. Já havia feito greve, prometera ficar uma semana sem acessar, mas não conseguiu. Depois, mais razoável, prometeu acessar, mas sem interagir: nada. Jurou não falar de sua vida, não postar fotos, mas não resistia. Queria mostrar para todos como sua vida era legal, como era feliz e bem resolvida. Não era? Todos ali eram assim. Sabiam tudo de sua vida pelo Facebook. Ela, por sua vez, descobria o que quisesse sobre quem quisesse.
Pensou em 1984, um de seus livros favoritos, onde os cidadãos de uma Londres fictícia eram vigiados até quando dormiam, controlados sobre o que comiam, que exercícios praticavam, o que liam e até as pessoas que amavam. O mundo não estava assim atualmente? O que era segredo? Há quanto tempo não recebia uma ligação de um amigo ansioso por notícias dela? Há quanto tempo não fazia uma ligação desse tipo? Tinha saudade do mistério, tinha saudade de sentir saudades, de ter segredos...
Às vezes
tinha vontade de desaparecer do mundo virtual, como as pessoas sumiam em 1984.
Fantasiava se continuaria a existir se sumisse do mundo virtual. Pensava sobre
em que medida o mundo virtual era também real.
Mas... Como assim? Em 1984 o personagem principal diz relutante, que sua história e sua intimidade estão vivas e seguras em sua memória. Será mesmo assim? Na sala de espera, ainda pensando nessas coisas, lembrou-se das perguntas que faria à médica. Sim: havia um lugar que só ela conhecia, onde podia pensar o que quisesse, gostar, odiar, sentir medo, chorar, sonhar, desejar, ter ideias mirabolantes, podia ser e fazer o que quisesse, mas não era nada demais, nem de menos, nesse lugar ela era apenas ela, sem ter que dar satisfação pra ninguém, sem precisar fazer check-in. A esse lugar, onde nenhuma câmera pode acessar, muito poucos seriam convidados a conhecer. Mas não se importava com isso: sempre soube que quantidade não queria dizer qualidade e que a maioria das pessoas ficaria satisfeita com as fotos e frases de efeito postadas a cântaros nas timelines, com as imagens refletidas em espelhos grandes e claros dos elevadores. Dessas pessoas, ela queria correr.
Sabia que quem realmente importava, assim como ela, não se contentava com as superfícies lisas e espelhadas, mas preferiam as profundezas, por mais escuras, incertas e desafiadoras que elas fossem.
Mas... Como assim? Em 1984 o personagem principal diz relutante, que sua história e sua intimidade estão vivas e seguras em sua memória. Será mesmo assim? Na sala de espera, ainda pensando nessas coisas, lembrou-se das perguntas que faria à médica. Sim: havia um lugar que só ela conhecia, onde podia pensar o que quisesse, gostar, odiar, sentir medo, chorar, sonhar, desejar, ter ideias mirabolantes, podia ser e fazer o que quisesse, mas não era nada demais, nem de menos, nesse lugar ela era apenas ela, sem ter que dar satisfação pra ninguém, sem precisar fazer check-in. A esse lugar, onde nenhuma câmera pode acessar, muito poucos seriam convidados a conhecer. Mas não se importava com isso: sempre soube que quantidade não queria dizer qualidade e que a maioria das pessoas ficaria satisfeita com as fotos e frases de efeito postadas a cântaros nas timelines, com as imagens refletidas em espelhos grandes e claros dos elevadores. Dessas pessoas, ela queria correr.
Sabia que quem realmente importava, assim como ela, não se contentava com as superfícies lisas e espelhadas, mas preferiam as profundezas, por mais escuras, incertas e desafiadoras que elas fossem.
