quinta-feira, 27 de março de 2014

Espelhos ou Mares?


Num sobressalto, Beatriz entrou no prédio da médica. Havia planejado mentalmente tudo que iria perguntar à doutora, uma mulher de meia idade, elegante, que sempre inspirou sua confiança e admiração, embora envolta em uma aura séria, quase sisuda, diria. Precisava criar coragem para fazer as perguntas. Coisas do seu mundo particular, que não dizia nem para o espelho. Espelho?
Entrou no elevador. Olhou para o espelho, para a câmera acima da porta, e para o espelho novamente. Adorava os espelhos grandes e claros dos elevadores: podia ajeitar os cabelos, reparar cada manchinha do rosto, ver se o batom estava precisando de retoque. O elevador estava vazio, então, seria uma excelente oportunidade para aproveitar o espelho sozinha, sem ninguém pra julgar seu impulso feminino vaidoso. Mas havia a câmera, pensou, sempre há câmeras ultimamente. Onde quer que se vá. Deu as costas para a câmera e ficou ser olhando, ajeitando os cabelos à maneira que gostava. E enquanto subia, ficou imaginado se poderiam lhe ver através do espelho, por uma câmera secreta que instalaram para observar garotas desavisadas que gostam de se olhar nos grandes e claros espelhos de  elevador. Hoje tem câmera em todos os lugares. Beatriz ficava assustada com aquilo. Sentia-se vigiada. E não eram só as câmeras : a pouco tempo, descobrira na escola que os carrinhos de supermercado possuem sensores que monitoram os trajetos dos clientes nas lojas. Logo ela, que dava mil voltas até achar a uva passa, e depois o pão , e a pasta de dentes. Na Internet, anúncios de coisas que ela queria comprar a perseguiam em todos os sites: como eles podiam saber? Até no e-mail, se recebia uma mensagem sobre academia, logo anúncios sobre vida saudável começavam a brotar na tela. No rádio do celular, surgiam anúncios de estabelecimentos dos quais ela estava próxima. Será que não consigo ficar sozinha? Pensava.
Isso para não falar das redes sociais modernas. Já havia feito greve, prometera ficar uma semana sem acessar, mas não conseguiu. Depois, mais razoável, prometeu acessar, mas sem interagir: nada. Jurou não falar de sua vida, não postar fotos, mas não resistia. Queria mostrar para todos como sua vida era legal, como era feliz e bem resolvida. Não era? Todos ali eram assim. Sabiam tudo de sua vida pelo Facebook. Ela, por sua vez, descobria o que quisesse sobre quem quisesse.
Pensou em 1984, um de seus livros favoritos, onde os cidadãos de uma Londres fictícia eram vigiados até quando dormiam, controlados sobre o que comiam, que exercícios praticavam, o que liam e até as pessoas que amavam. O mundo não estava assim atualmente? O que era segredo? Há quanto tempo não recebia uma ligação de um amigo ansioso por notícias dela? Há quanto tempo não fazia uma ligação desse tipo? Tinha saudade do mistério, tinha saudade de sentir saudades, de ter segredos...
Às vezes tinha vontade de desaparecer do mundo virtual, como as pessoas sumiam em 1984. Fantasiava se continuaria a existir se sumisse do mundo virtual. Pensava sobre em que medida o mundo virtual era também real.
Mas... Como assim? Em 1984 o personagem principal diz relutante, que sua história e sua intimidade estão vivas e seguras em sua memória. Será mesmo assim? Na sala de espera, ainda pensando nessas coisas, lembrou-se das perguntas que faria à médica. Sim: havia um lugar que só ela conhecia, onde podia pensar o que quisesse, gostar, odiar, sentir medo, chorar, sonhar, desejar, ter ideias mirabolantes, podia ser e fazer o que quisesse, mas não era nada demais, nem de menos, nesse lugar ela era apenas ela, sem ter que dar satisfação pra ninguém, sem precisar fazer check-in. A esse lugar, onde nenhuma câmera pode acessar, muito poucos seriam convidados a conhecer. Mas não se importava com isso: sempre soube que quantidade não queria dizer qualidade e que a maioria das pessoas ficaria satisfeita com as fotos e frases de efeito postadas a cântaros nas timelines, com as imagens refletidas em espelhos grandes e claros dos elevadores. Dessas pessoas, ela queria correr.
Sabia que quem realmente importava, assim como ela, não se contentava com as superfícies lisas e espelhadas, mas preferiam as profundezas, por mais escuras, incertas e desafiadoras que elas fossem.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Ele



“A falta de paciência hoje é a saudade de amanhã”, dizia um texto do Frederico Elboni, no blog “Entenda os Homens”, que eu acompanho há um tempo. O texto falava sobre compreender e tocava, como exemplo, no relacionamento entre pais e filhos, especialmente aquele tipo de pai que pouco se expressa com o filho, que pouco diz, que pouco abraça. Sei que o texto não dizia só disso, mas essa parte me tocou especialmente, porque meu pai é assim. Me deu uma vontade de sair correndo e dar um abraço nele!
Meu pai é o homem da minha vida. Sempre foi: quando eu era criança, lembro dele dançando música lenta comigo na sala. Engraçado, naquela época, eu não imaginava que no futuro ia me apaixonar com o bolero e dançá-lo melhor que todos os outros ritmos. Aquela dança com meu pai era mágica! Eu me sentia isolada do resto do mundo dançando com ele, dura, feliz, plenamente realizada. Eu queria que o mundo acabasse ali.



Lembro de sentar no colo dele, até depois de grande (ou velha, já que nunca fui grande “anatomicamente”). Meus irmãos sentiam ciúme. Era como se eu, mais que eles, conseguisse me aproximar mais, e talvez até transpor aquela barreira que a timidez, ou a falta de jeito, ou a rotina, havia criado entre nós e nosso pai. Sentar no colo dele era tudo pra mim! Naquele instante, eu era a pessoa mais amada do mundo. E eu, que conheceria tantos lugares, não queria sair daquele – o colo do mau pai – nunca mais na vida!
Levar o prato dele vazio para a cozinha, fazer almoço pra ele, ser acordada pelo pé todas as manhãs: Detalhes da nossa rotina passada que hoje me fazem sentir tanta saudade. Não sei se foi o trabalho, a universidade, a mudança de cidade, os namoros: hoje não é mais assim. Eu continuo amando e querendo todas essas coisas que eu contei. Tenho certeza que ele continua me amando mais que a maioria das coisas da vida.
Vamos no carro, ele me levando pra algum lugar para o qual estou atrasada. Vou calada. Quero dizer algo, mas eu, tão falante, não consigo pensar em nada propício para furar aquele silêncio. O mesmo que durante as brigas homéricas com a minha mãe permeava o olhar cúmplice e compreensivo que ele me dava. O olhar mais terno do mundo, que sempre me dava certeza que o amor existia. Que sem dizer nada, me curava de qualquer dor que estivesse sentindo, que me fazia acreditar no futuro, nas pessoas, na família.
Momentos com mau pai são cada vez mais raros. Outro dia, eu estava lá no meu quarto, assistindo um filme quando minha mãe vem e diz que ele está me chamando. Droga! O que será que ele quer? Vou ter que interromper o filme. Ele quer que eu coloque a TV dublada (ele acha que eu sei tudo sobre controles remotos, computadores e qualquer coisa que ligue na tomada ou tenha bateria recarregável). Depois de penar um pouco, consigo o que ele queria. Ele fica feliz. E eu, agora lendo o texto do Fred Elboni, e refletindo sobre tudo isso, senti vergonha da minha falta de paciência, que agora é saudade, do homem da minha vida. Mandei um SMS. Assim que puder, vou lá abraçá-lo. Faça o mesmo pra quem você ama, e anda distante ultimamente.

Voltei. Tava com Saudade.

Hoje eu voltei. Voltei porque senti saudade. Saudade do tempo que eu podia chorar no seu ombro as minhas mágoas, filosofar minhas ide...